Avaliar está na moda. Para o bem e para o mal, em todos os níveis, em todo o planeta, há uma tendência cada vez maior a implantar exames padronizados nas redes de ensino, o que facilita a comparação não apenas entre estudantes, mas também entre escolas e professores, entre redes inteiras e até entre países.
Não se faz pedagogia sem avaliação. Nisso todos concordamos. Agora, não se deve fazer avaliação sem uma concepção clara sobre as vantagens e as possíveis desvantagens das nossas escolhas sobre o que e como avaliar.
Quando privilegiamos um caminho de avaliação, necessariamente tomamos decisões sobre o que será levado em conta e, consequentemente, sobre o que será ignorado, o que ficará “de fora” das análises avaliativas. Ignorar ou esquecer isso é extremamente perigoso…
Para dar um exemplo bem claro e facilitar a discussão dessa questão, inventei uma pequena história estranha e triste, que peço que você leia:
Uma história de canibalismo
No meio da floresta tropical, é dia de prova. Toda a tribo está reunida para ver o pajé-examinador aplicar uma bateria de testes e fazer as escalas de avaliação dos futuros caçadores, batedores, escaladores de cipó, pescadores, artesãos, etc.
Para que os pais fiquem mais relaxados, enquanto não começam os testes, o pajé promove uma exibição de vídeo: trata-se de um filme feito por psicólogos da tribo, em que os testes são aplicados em duas crianças capturadas em um ataque a fazendas de colonizadores brancos.
Todos riem da performance desastrada das crianças brancas, que caem das árvores, enrolam-se nos cipós, quase engolem os dardos das zarabatanas… Enfim, todos concordam quando, encerrando a nossa triste história, o chefe da tribo diz:
— Puxa, que desastre! Mas como são burrinhas e incompetentes essas crianças civilizadas! Acho que só vai dar mesmo para aproveitá-las no jantar de formatura…
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Essa história absurda, de humor duvidoso, serve para ilustrar a noção de que qualquer método de avaliação, por definição, seleciona algumas características para serem avaliadas e ignora outras.
O sistema de avaliação do pajé da história, por exemplo, é incompleto porque se limita a avaliar o que é importante pelos critérios de uma tribo que vive de caçar e pescar. Uma criança que não tem destreza física nessas áreas é um “fracasso”. As crianças capturadas certamente possuíam inúmeras habilidades e competências. Possivelmente, sabiam fazer coisas como ler e escrever, resolver problemas de Matemática, localizar diversas cidades em um globo terrestre, andar de bicicleta, participar de jogos dos mais diversos tipos, etc. O que aconteceu é que nenhuma dessas competências foi levada em conta pelo processo de avaliação do pajé. Ao escolher avaliar de um jeito, todo o resto ficou de fora. Como avaliar o que nem ao menos se sabe que existe?
Talvez você até concorde com a ideia de que os métodos de avaliar do pajé, pedindo principalmente destreza física, tornaram as crianças “incompetentes” aos olhos de toda a tribo. Mas é possível que você também esteja pensando algo como: “Mas essa é uma história meio sem pé nem cabeça, inventada, e nada de parecido pode acontecer no mundo real”. Será mesmo que não?
O relato apresentado a seguir fala de uma das pesquisas em psicologia da educação mais conhecidas e citadas de todo o planeta. No contexto desse artigo, o resumo a seguir poderia ter também o título de “Da pajelança à lambança: evidências do fracasso de um sistema de avaliação”.
“Na vida 10, na escola 0” — Quando a escola ignora o que as crianças já sabem
Em 1988, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco publicaram o livro Na Vida Dez, na Escola Zero¹, no qual relatam pesquisas realizadas com crianças que haviam sido reprovadas em Matemática por escolas públicas de Recife. Todas as crianças pesquisadas trabalhavam, ajudando seus pais na feira ou vendendo amendoim e outros produtos, nas praias da cidade.
Os pesquisadores ficaram espantados quando, ao acompanhar algumas crianças que ajudavam seus pais a vender em barracas de feira, perceberam que elas, de cabeça, faziam os mais diversos cálculos sobre preços e não erravam sequer os valores ou ao dar o troco aos clientes! Como era possível que essas crianças, que evidentemente sabiam fazer contas, tivessem sido reprovadas?
Intrigados, os pesquisadores propuseram três tipos de situação para as crianças: na primeira, em seu próprio ambiente de trabalho, elas respondiam a várias questões do tipo: “Quanto custam dois cocos?” e “Se eu te der R$ 200,00, qual vai ser o meu troco?”.
As crianças acertaram praticamente todos os cálculos, e os pesquisadores propuseram uma situação formal de teste: elas deviam responder a perguntas do mesmo tipo ao participar de uma brincadeira de compra e venda, com produtos e dinheiro de brincadeira. Mais uma vez, as crianças — reprovadas por “não saberem nada de Matemática” — acertaram a maioria das perguntas. Ficou comprovado que elas sabiam bastante Matemática, no contexto de sua cultura oral, e sua capacidade de calcular impressionou os pesquisadores.
Chegou a terceira etapa, em que, com lápis e papel, as crianças tinham de resolver as mesmas operações que tinham feito no contexto social ou no jogo simulado. E, dessa vez, elas não acertaram nada. Os pesquisadores perceberam que, com lápis e papel, elas não acertavam nem mesmo contas como “3+1” ou até “1+1”! Como era só esse terceiro tipo de situação que era usado na escola, para avaliar as crianças, todas elas reprovavam em Matemática! Reprovavam e continuam reprovando…
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O que aconteceu e por que essa pesquisa deve servir como um grande alerta para todos nós, especialmente para quem utiliza testes padronizados? De uma forma acadêmica e rigorosa, ficou comprovado que, no dia a dia fora da escola, as crianças tinham desenvolvido grandes habilidades para fazer todos os tipos de contas “de cabeça”, e que a escola era incapaz de reconhecer e aproveitar essa imensa experiência.
Pior: chega-se a uma conclusão bastante séria — ao acreditar em um ensino e em uma avaliação que não considerava outra coisa além do resultado de contas feitas por escrito, a escola passava para essas crianças, muitas das quais já sabiam fazer contas melhor do que a maioria de seus colegas, a imagem de “incompetentes”. Será que, apesar das implicações claríssimas dessas pesquisas e de inúmeros esforços de mudança, a avaliação das competências matemáticas continua sendo feita de forma parecida até os dias de hoje?
É possível perceber um certo parentesco com nossa história triste de canibalismo? Nos dois casos, inúmeras habilidades e competências que as crianças possuíam não foram sequer consideradas na avaliação; nos dois casos, crianças acabam massacradas por processos avaliativos que, em vez de buscar caminhos para se renovarem e adaptarem-se a um público diferente, optam por continuar encobrindo suas próprias omissões, preferindo qualificar as crianças como incompetentes a questionar seus próprios pressupostos.
Existe uma moral dessas duas histórias: fazer avaliação sem refletir sobre o que deixamos de fora, confiando cegamente apenas nos resultados dos caminhos privilegiados, é arriscar-se a produzir, cotidianamente, novas tragédias.
Como reflexão positiva, para concluir, é importante observar que o uso de uma forma de avaliar não exclui necessariamente o emprego de outros caminhos de avaliação, que permitam enriquecer os sistemas de testes padronizados com dados sobre os talentos, habilidades e preferências de cada estudante. É o que acontece, por exemplo, com o aumento do uso dos portfólios na avaliação. Mesmo que você confie nos testes, lembre-se da importância de sempre buscar “olhar para o que pode ter ficado de fora”…
Nota 10 a você que me acompanhou até aqui!
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1 – Terezinha Carraher, David Carraher, Analúcia Schliemann. Na vida dez, na escola zero. São Paulo: Cortez, 1988. Ver especialmente o capítulo V. Uma pesquisa bastante semelhante, realizada com crianças de favelas de Buenos Aires, foi realizada por Emília Ferreiro: “O cálculo escolar e o cálculo com dinheiro em situação inflacionária”, em: Alfabetização em processo. São Paulo: Cortez, 1987. Capítulo 5.
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